domingo, 6 de dezembro de 2009

Isso é Jornalismo! (12)


O seguinte artigo foi publicado no excelente site "Digestivo Cultural". A autora, Adriana Baggio, deixa claro que não tem (ou, pelo menos, não tinha) apreço pelo povo argentino, mas coloca de lado as paixões quando precisa relatar fatos: "Em nenhum momento fui hostilizada por ser brasileira", diz. Por isso, a leitura é recomendada.

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Um dos melhores momentos da viagem de navio que fiz em fevereiro foi a chegada a Buenos Aires. Entramos no Rio da Prata de madrugada. Por volta das 7 da manhã, já estávamos chegando ao porto. Bem devagarinho, o navio entrou nas docas, guiado pelo barco do prático. Apesar do tamanho, fez algumas manobras, deu ré e "estacionou" tranquilamente no espaço reservado a ele.

A vista de Buenos Aires a partir do rio lembra a da Manhattan que eu vejo nos filmes e fotos. Edifícios enormes, de paredes envidraçadas e linhas modernas, parecem separar o porto da cidade. No alto, letreiros de neon apresentam algumas das marcas de tecnologia mais famosas do mundo.

O centro é perto do porto. Lá estão os principais monumentos da história argentina: a Plaza de Mayo, a Casa Rosada, a Catedral Metropolitana. O contraste entre a rebuscada sede do governo e as linhas retas do templo religioso resume o paradoxo arquitetônico de Buenos Aires: de um lado, construções repletas de detalhes, cúpulas e ornamentos; do outro, edifícios em estilo neoclássico, norma arquitetônica do século XIX, quando se queria transformar Buenos Aires em uma filial da Europa nas Américas.

Naquela quarta-feira de fevereiro, as mães e avós dos presos e desaparecidos durante a ditadura argentina não estavam na Plaza de Mayo. Ao invés delas, outras mães abordavam os turistas: mendigas, sem-teto, mulheres em andrajos com crianças de colo pediam um dólar, un peso. É o que mais aproxima Buenos Aires das outras metrópoles da América do Sul. De resto, parecem mais diferente de nós do que se espera por sermos tão vizinhos.

Andando em um centro comercial como a Avenida Corrientes ou a Calle Florida, percebe-se uma certa altivez que não é muito comum nos brasileiros. As pessoas são bem vestidas como os executivos de São Paulo, mas parece que têm mais estilo, mais personalidade. Na sua própria terra, os argentinos são mais simpáticos do que aqui no Brasil. Em nenhum momento fui hostilizada por ser brasileira. Só me olharam com cara feia quando demorei para decidir o acompanhamento do bife de chorizo.

Existem outras diferenças marcantes e já até antológicas: o mito de que a quantidade de livrarias seja maior na capital portenha do que em todo o Brasil; a taxa de analfabetismo, menor do que a nossa; o nacionalismo exacerbado, que às vezes os tornam tão insuportáveis. Por outro lado, existe uma Buenos Aires mais parecida com as nossas cidades, que talvez não esteja à vista dos turistas, mas que recebeu um olhar crítico nos ensaios da professora e crítica literária Beatriz Sarlo.

A autora é mais conhecida por seus trabalhos sobre literatura, mas também tece considerações sobre aspectos do cotidiano e da realidade argentina. Em Tempo presente – notas sobre a mudança de uma cultura (lançado na FLIP em 2005, pela José Olympio), é possível conferir alguns textos proferidos em conferências ou publicados em periódicos. E através destes ensaios, percebemos uma proximidade muito maior entre a nossa realidade e a deles.

Os textos de Sarlo às vezes são tão próximos, ou tão universais, que ela parece estar falando de nós, e não deles: "Sem tempo para fazer projetos, sem futuro, os corpos correm os riscos impostos pela dívida [do estado com a sociedade] não-paga: a violência, a ruptura de todos os laços sociais, a selvageria da droga são desafios vistos como se fossem a única afirmação possível da identidade. Quando se rompe a expectativa de um tempo futuro, quando ninguém se sente mais credor nem titular de direitos, os corpos usam a violência para se rebelar"

Como ela mesmo diz, frases como a de cima há alguns anos eram impensáveis na Argentina. Hoje, o país padece não só de males como os da fome, da violência e da guetização de parte da população em bairros miseráveis, mas também de outros problemas: o impacto das construções desordenadas nos espaços públicos, as novas identidades culturais, a crise da escola, a política. Problemas comuns de grandes cidades, familiares a nós. Mas, se é para traçar paralelos, talvez o texto mais pertubador seja aquele que posiciona a Copa do Mundo de 1978 como um fato tão importante no aspecto esportivo quanto no político.

No esportivo, é fácil: a Argentina foi campeã do Mundial disputado em casa. O político: é que isso aconteceu em plena ditadura. O sucesso da seleção argentina parecia respaldar um governo que, ao mesmo tempo, puxou para si a vitória e cuidou para que não existissem protestos a serem noticiados pela imprensa estrangeira. O que impressiona na análise de Beatriz Sarlo é a crítica que ela faz sobre como se vê o Mundial, 20 anos depois.

Na Copa de 98, as crianças argentinas puderam assistir aos jogos nas escolas, desde que, segundo orientação das autoridades educacionais, fossem trabalhados conteúdos de história, geografia e ética, em relação aos países participantes do Mundial. Mas a autora questiona: "Se a idéia era a de permitir que os jovens vissem o futebol com verdadeiro 'espírito crítico', como afirmou uma funcionária pública, sugiro o seguinte: o futebol tem uma relação intrincada com a Argentina dos últimos vinte anos, e por isso seria bom que as escolas aproveitassem a febre do Mundial para apresentar a história recente aos pequenos adoradores da camisa azul-celeste".

De acordo com a sugestão de Sarlo, na disciplina de História poderiam ser estudados os assassinatos cometidos pela ditadura entre uma partida e outra; em Geografia, uma atividade interessante seria contextualizar no mapa os estádios onde os jogos foram realizados em relação aos centros de tortura; para entrar um pouco em Sociologia, seria possível explicar aos alunos mais velhos como os cenários esportivos são transformados em cenários políticos pelas ditaduras. Por mais que a gente deteste os argentinos, em algumas coisas somos muito semelhantes.

A mesma paixão que nos torna inimigos, também nos aproxima em comportamento. Se eles tiveram sua vitória em 78 comemorada sobre os porões de tortura da ditadura, nós também fizemos o mesmo no Mundial de 70. E assim como eles, a gente acaba tendo uma postura mais condescendente, mais relaxada, durante a Copa do Mundo. A vida já é tão dura para o brasileiro, merecemos comemorar e esquecer um pouco os problemas, as eleições, o mensalão, não é mesmo?

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