segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Isso é Jornalismo? (12)


O implicante repertório brasileiro em relação à Argentina parece não ter fim. A imprensa - formadora da maior quantidade de opiniões - ataca impiedosamente o país vizinho, e não apenas no âmbito esportivo. Vale tudo para ludibriar e convencer os expectadores de que a Argentina é um mal, claro reflexo da xenofobia.

Quem mais contribui para isso é a tradicional (em fatos bons e ruins) Rede Globo de Comunicação. A inesgotável atitude deu o ar da graça no Jornal da Globo do dia 5 de agosto de 2009, apresentado por William Waack, velho conhecido dos frequentadors do YouTube (várias ofensas a colegas e 'erros' no ar). A reportagem narrava um pequeno trecho da ditadura militar argentina, mostrando que grandes nomes da música mundial como Pink Floyd, Eric Clapton e ("Até!" enfatiza o apresentador) Roberto Carlos foram censurados pelo governo vizinho da época. Detalhes foram dados durante a matéria, criticando os motivos apresentados para a censura das músicas e dos artistas.

O foco principal da matéria era dizer que o regime militar mais cruel e incoerente da historia foi o Argentino. Claramente tenta instigar o público contra o país vizinho, usando o nome de Roberto Carlos - ídolo de todos nós - como ponte. Os nomes de Clapton e Floyd também são queridos por aqui, ou seja, “a sanguinária ditadura argentina censurou grandes gênios (e o "nosso Rei!"), foi violenta e incoerente, mostrando total despreparo, um absurdo”. Ao final, o “simpático” apresentador faz cara de desprezo e repúdio.

A grande falha deste tipo de matéria é a parcialidade: com ela cai por terra todo o trabalho que se teve anteriormente. Nos perguntamos por que o Jornal da Globo não citou casos em que o regime militar brasileiro (o maior perseguidor de grandes artistas na América Latina) censurou nomes e obras de artistas geniais, na maioria das vezes porque eram contra o regime, ou por simples exercício de poder? por que não lembrou de 24 anos de terror, perseguição e violência ocorridos aqui, dando a entender que a história política brasileira é imaculada e que os argentinos sim é que perseguiram os ícones da música mundial?

A informação histórica dada pelo Jornal é irrefutável, admitimos, mas não aceitamos que em nome da perseguição e do racismo a Argentina seja pisoteada pelos motivos apresentados sem que as pessoas lembrem que no Brasil ocorreram fatos tão ou mais graves. Não há como se falar em governo ditatorial e violência sem citar o Brasil – e a Globo não cita só por conveniência.

Falando um pouco sobre o teor de violência na ditadura brasileira: Os presos não podiam sequer entrar em contato com seus advogados, eram interrogados sob tortura (ameaças à vítima ou seus familiares; obrigar os detidos a assistir sessões de tortura a outros presos; espancamentos; violência sexual...), na maioria das vezes por motivo nenhum.

Quem não ouviu falar nos instrumentos e métodos de tortura utilizados pelo regime? palmatória, enforcamento, o "pau-de-arara", choque elétrico, afogamento, a "cadeia de dragão", entre outros que não precisamos detalhar. Todos eram submetidos ao Estado, caso contrário, tortura e morte. A entrevista abaixo ajuda a explicar:

Agora, falemos de música/censura.

Artistas de todos os segmentos foram presos, censurados, perseguidos e exilados pelo governo brasileiro, um exemplo: Augusto Boal, excelente compositor e autor de peças de teatro. Como a reportagem global focou grandes nomes da música, faremos o mesmo. Foram perseguidos deliberadamente: Chico Buarque, Caetano Veloso, Geraldo Vandré, Gilberto Gil, Vinicius de Moraes, Milton Nascimento, Aldir Blanc, Carlos Lyra, Belchior, Tom Jobim, Taiguara, Luis Melodia, Adoniran Barbosa, entre outras feras.

Canções despretensiosas foram censuradas, como “Partido Alto” de Chico Buarque - por usar os termos “titica” e “nasci brasileiro” -, e “Despedida” de Geraldo Vandré e Geraldo Azevedo - por conteúdo “político”. Caetano Veloso e Gilberto Gil talvez tenham sido os que mais sofreram violência. Na época da prisão dos dois cantores (No réveillon!!!), em dezembro de 1968, os militares tinham a “acusação” de que ambos tinham desrespeitado o Hino Nacional, cantando-o aos moldes do tropicalismo na boate Sucata, e uma ação que queria mover um grupo de católicos fervorosos, ofendidos pela gravação do “Hino do Senhor do Bonfim” (Petion de Vilar – João Antônio Wanderley), no álbum “Tropicália ou Panis et Circenses” (1968).

Juntou-se a isto a provocação de Caetano Veloso na antevéspera do natal de 1968, ao cantar “Noite Feliz” no programa de televisão “Divino Maravilhoso”, apontando uma arma na cabeça. O resultado foi a prisão e o exílio dos dois baianos em Londres, de 1969 a 1972. Ainda do repertório do álbum mítico “Tropicália ou Panis et Circenses”, a música “Geléia Geral” (Gilberto Gil – Torquato Neto), sofreu o veto da censura por ser considerada de conteúdo política contestatória, além de segundo os censores, fazer um retrato equivocado da situação pela qual passava o país. Ao retornar do exílio, Caetano Veloso e Gilberto Gil sofreram com a perseguição da ditadura e da censura.

Em 1973, Caetano Veloso teve a sua canção “Deus e o Diabo”, vetada por causa do último verso “Dos bofes do meu Brasil”. Nem os menos badalados Dom e Ravel, Genival Lacerda, Zé Ketti, Odair José, Waldick Soriano e Luis Ayrão escaparam da tesoura. Tudo isso sem contar (Sim!) o rei Roberto...

Roberto Carlos também teve situações célebres nesse sentido: em 1965 lançou o álbum "Canta a La Juventud", versão em espanhol do álbum "É Proibido Fumar", lançado no Brasil um ano antes. O disco foi recolhido pelo simples fato de conter canções no idioma hispânico, pois elas eram consideradas "subversivas" (o 'termo da época' ironicamente mencionado por Lannoy na reportagem). E em 1971 a canção "Amada, Amante" teve dois versos modificados a pedido/mando dos censores (!).

Anos depois, alguns dos tantos absurdos da repressão à música brasileira são confirmados, como mostram os depoimentos abaixo. Com a palavra Odette Lanziotti, que atuou como técnica de censura entre os anos de 1966 e 1980, e o Dr. João Carlos Muller Chaves, advogado das gravadoras Phonogram e EMI-Odeon. Em entrevista ao Censura Musical, a ex-censora recordou os tempos em que trabalhava na Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP), e Muller contou que por inúmeras vezes visitou o departamento de censura para reverter a proibição de canções.

CM: A senhora acredita que existia algum tipo de “marcação” em relação a grandes nomes como Caetano Veloso, Chico Buarque, Geraldo Vandré. Por exemplo, o mesmo censor recebia as músicas de determinado autor, já sabendo quais eram as suas artimanhas? Ou o processo era aleatório, cada censor pegava as letras sem ordem alguma?

Odette: Eu acho que sim, creio que sim. Havia censores mais específicos para determinados autores. Eu nem poderia dizer isso, porque algumas caíram nas minhas mãos, como músicas de Chico Buarque, de Geraldo Vandré, de um modo geral as músicas caíam nas mãos de censores mais experientes.(...) Existiam censores mais específicos para determinados autores, para analisar as canções políticas

CM: O critério da censura.

Dr. João: Extremamente subjetivo. O critério era o medo. Medo da instância superior. Muito conforme o humor do chefe.

CM: Qual foi o censor mais rígido em todos os anos de censura?

Dr. João: Solange Hernandez. Ela foi diretora. Não só por mim, mas pra qualquer um que você perguntar. Eu vou desconsiderar os funcionários, porque todos eles eram intimidados, uns mais, outros menos. Os funcionários eram sujeitos a pressão de cima.

Um jornal brasileiro jamais poderia criticar o governo argentino - ainda mais se for da Globo, simpatizante do período ditatorial brasileiro, como se pode ver no video de Chico Buarque e na foto acima -, uma vez que a ditadura brasileira cometeu atos tão graves quanto. Antes de a emissora "ligar o ventilador", precisa olhar primeiro para dentro do seu próprio país. Nunca é demais lembrar que a proposta da OAB é para que o Brasil siga o exemplo de países vizinhos que também enfrentaram ditaduras - e adotaram soluções diferentes no acerto de contas.

Na Argentina, a Corte Suprema anulou a lei de anistia adotada durante a ditadura. Militares que torturaram prisioneiros políticos foram julgados e condenados. Na semana passada, a presidente Cristina Kirchner decretou a abertura dos arquivos das Forças Armadas, até mesmo os considerados confidenciais. No Brasil, militares alegam que os arquivos foram queimados. É de assustar. Mas para a Globo é diferente, é conveniente, é Argentina. Para nós, é xenofobia.

2 comentários:

  1. Uma aula de história e música. Perfeito. "O sujo falando do mal lavado"

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  2. O sujo (A Globo) falando do mal lavado (O Brasil).

    Bela Matéria, parabéns! Abaixo a Globo, abaixo a xenofobia!

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