sexta-feira, 1 de março de 2013

Isso é Jornalismo! (48)

O artigo abaixo foi publicado pela Revista Época, durante a Copa do Mundo de 2002, antes de o Brasil ser campeão. O jogo mencionado, contra a Suécia, já foi lembrado aqui - e as cidades descritas são diferentes.

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Tão argentinos como nós
Na verdade, a Argentina ainda não virou o Brasil
MARIA RITA KEHL


A Argentina está fora da Copa. Torcedores brasileiros comemoraram o gol da Suécia com rojões. Lamento. Se o Brasil tivesse sido eliminado, confesso que eu estaria torcendo para a Argentina. Sei que a rivalidade entre brasileiros e argentinos no futebol ultrapassa a medida do simples preconceito. O esporte é uma via simbólica que possibilita que a rivalidade e a inimizade entre grupos se manifestem, sem (grandes) riscos para ambas as partes.

É claro que a eliminação do time da França sem marcar nem um gol de consolação lavou nossa alma da humilhante derrota de 1998. Queremos esquecer a responsabilidade brasileira naquele fracasso, não queremos? A Nike, as suspeitas (não esclarecidas) de pressões e acordos espúrios, Ronaldo (ex-Ronaldinho) cambaleante em campo, nossa perplexidade, a vergonha daquele jogo final. Nada mais conveniente que festejar a derrota da França para esquecer nosso vexame de quatro anos atrás.

Bem, mas este não é um artigo sobre futebol; é sobre a intolerância entre vizinhos. Brasileiros não gostam de argentinos. Também não gosto do racismo deles, quando nos chamam de “macaquitos” – tanto quanto não gosto da versão soft do racismo praticado aqui. Mas desconfio que o racismo dos argentinos é a menor das razões do preconceito brasileiro. As justificativas mais freqüentes são outras: argentinos são arrogantes. Pensam que são melhores que nós. Vestem um ego dois números maior... Será que o que nos incomoda é a arrogância ou simplesmente a auto-estima argentina? Como é que um país pequeno do extremo sul da América do Sul, tão perto de nós, ousa se levar tão a sério? Como é que eles não demonstram sentir, em relação aos europeus, a inferioridade que nós sempre ostentamos? Eles pensam que são ingleses, ou o quê? Ou pensam que são argentinos, e que isso já é uma grande coisa. Imperdoável.

Talvez se orgulhem de alguns episódios de sua história: a expulsão dos ingleses pela população de Buenos Aires a pedra, bala e óleo quente, no começo do século XIX, que culminou com a revolução pela independência, liderada pelo general San Martín, verdadeiro herói nacional. A intensa mobilização contra a ditadura militar, que vitimou mais de 30 mil jovens na década de 70. Talvez eles se orgulhem de não se esquecer de suas conquistas e não deixar barato suas derrotas. As mães da Plaza de Mayo cobram até hoje dos governantes a vida de seus filhos e netos. Os estudantes cobram a prisão dos torturadores. Acho que os argentinos têm do que se orgulhar.

A memória compartilhada produz auto-estima, que por sua vez produz um tipo de coesão social muito diferente da que conhecemos aqui. Hoje, no Brasil, já enfrentamos uma crise social mais grave que a da Argentina, onde a crise econômica é alarmante. Governantes e candidatos ameaçam o país com o “risco Argentina”. Antes fosse este o nosso risco. Que bom se os brasileiros tivessem, diante da crise social que já enfrentamos hoje, a disposição de mobilização, de luta, de questionamento que os argentinos têm. Que bom se, diante da miséria e do desemprego crescentes que ameaçam a sociedade inteira, a classe média brasileira mostrasse a disposição solidária de nossos vizinhos argentinos. Diante da falta de perspectivas políticas, a população de Buenos Aires está se organizando por bairros, criando uma microeconomia de produção doméstica e escambo.

Diante de uma nova multidão de indigentes – que aqui conhecemos tão bem – as pessoas separam as sobras de comida que iriam para o lixo em pacotes aproveitáveis. Não quero comparar a queda brutal da economia argentina, o sofrimento e o desamparo que atingem hoje toda a população, com a histórica desigualdade que parece quase “natural” aos olhos da sociedade brasileira. Mas a crise, lá, ainda não produziu o “cada um por si” característico de nosso jeitinho nacional. Nesse ponto, pelo menos, a Argentina ainda não virou Brasil.

Por outro lado, estamos tão perto dos problemas argentinos que preferimos fingir que não temos nada a ver com eles. “Narcisismo das pequenas diferenças”, é como Freud chamou a intolerância entre semelhantes; o vizinho nos incomoda muito mais que um estranho total. O vizinho nos questiona; está perto demais do que nós somos. Ameaça nossa frágil ilusão de “identidade”. Admito que vizinhos não são irmãos; nem são obrigados a se amar. Mas a intolerância contra vizinhos tão frágeis como nós tem pelo menos duas explicações: ou queremos afastá-los para esquecer os defeitos que compartilhamos com eles, ou estamos competindo – submissos e bajuladores – pela proteção de um suposto e todo-poderoso “pai”. Um pai – quem? O FMI? – que não vai fazer nada por nenhum de nós.

Maria Rita Kehl é psicanalista

2 comentários:

  1. "Orgulho" argentino de ter perdido a guerra das malvinas vc nao citou no seu texto não é...

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  2. Mas que mania!

    Primeiro lugar, o texto não é meu; segundo, pesquise um pouco mais sobre a guerra das malvinas, suas razões e desdobramentos, e você irá rever seus conceitos!

    http://hermanosebrazucas.blogspot.com.br/2010/02/duetos-13.html

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