terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Raça X Nacionalidade (74)


Semana passada, um caso lamentável aconteceu em Brasília-DF: uma mulher foi a um salão de beleza e, ao ver que seria atendida por uma manicure negra, exigiu que ela se retirasse e que outra pessoa a atendesse. A partir daí, proferiu diversas ofensas, a maioria delas associativa à cor da pele da funcionária.

Confira no video abaixo:



A referida persona foi presa em flagrante, conforme se vê nas imagens, mas poucas horas depois já estava solta novamente. Não, isso não é o mais absurdo. A história é pior do que parece.

A autora de tais injúrias atende pelo nome de Louise Stephanie Garcia Gaunth e, como se pode imaginar, não é nascida no Brasil: de acordo com todas as fontes, ela é oriunda da Austrália.

[Reveja o video acima, precisamente aos 21 segundos: "Devo ser muito bonita pra você ficar olhando!". Não há um sotaque forçado. A fluência no português, inclusive, demonstra que Louise tem familiaridade com a língua.]

A origem de Louise serviu de pano de fundo para a velha tática de se imputar os defeitos de ordem interna a algum fator externo notável, como a tentar justificar o porquê disso ou daquilo.

Fazendo uma busca na internet, seja pelos grandes jornais e portais ou vagando por blogs e fóruns, a notícia foi dada com 'variações do mesmo tema sem sair do tom': "Australiana comete racismo", "Australiana presa por racismo". O "Diário do Poder", periódico da capital federal, faz uma manchete ainda mais clara: "Australiana racista". (Aliás, parabenizamos aqui o UOL por noticiar o fato sem dar enfoque especial ao 'australianismo' de Louise: "racismo: mulher ofende a manicure e é presa", diz a manchete.)

o desabafo de Neya Gomes, a manicure que sofreu injúria racial de Louise Gaunth

Lendo os comentários nos mais diversos veículos, a toada é sempre a mesma: "volta pra Austrália, Canguru!", "o que esta vagabunda faz aqui? tem que ser deportada!", "não podemos tolerar que ela venha nos ofender", "por que o Itamaraty não a convida a se retirar do país?" e por aí vai. Houve quem sugerisse amarrá-la num poste, evocando fenômeno recente da sociedade brasileira.

Ressaltamos: em momento algum estamos defendendo ou defenderemos qualquer tipo de privilégios à sr(t)a. Gaunth, ou muito menos queremos fazer de conta que ela está sofrendo perseguição por não ser brasileira. Pelo contrário, entendemos que ela cometeu um crime NO BRASIL e, de acordo com a LEI BRASILEIRA, deveria arcar com o mesmo.

Porém, começa aí o festival de contradições e incoerências...

1) A sr(t)a. Gaunth já responde a sindicâncias por outras acusações de crimes de racismo, inclusive em seu trabalho;

2) Repetimos que o crime foi cometido no Brasil, e portanto ela deve responder por eles no Brasil: já tramita na Justiça de Brasília o processo do caso relatado pela manicure; 

3) A sr(t)a. Gaunth reside no Brasil há mais de 5 anos e é CONCURSADA da CEB  Distribuição;

4) Exigir a deportação/expulsão, etc, da sr(t)a. Gaunth é, antes de uma incitação ao ódio a imigrantes, uma demonstração profunda de desconhecimento das implicações legais de crimes de racismo e, mais que isso, ignorar o fato de que a "extradição" provavelmente seria BENÉFICA a Gaunth.

Aborígenes, povo primeiro da Austrália
Isto posto, outro fato vai chamar a atenção: a infeliz necessidade de se criticar Gaunth não por seu ato, mas procurando ofendê-la lembrando de sua nacionalidade.

Nos comentários da Revista Fórum, alguns leitores brazucas usaram dessa tática - uns, inclusive, buscando raízes históricas para "comprovar" que o povo da Austrália é racista -, e um australiano contra-atacou, jamais defendendo Gaunth mas sim apontando esse racismo às avessas dos "antropólogos" de plantão.

Mais importante e triste, porém, é ver um jornalista respeitado e conceituado como Nirlando Beirão se utilizar desse recurso em texto publicado em seu blog. Beirão fala do caso da sr(t)a. Gaunth e relembra o recém-ocorrido com Tinga: "Uma australiana racista? Peruanos racistas? Seria ridículo se não fosse trágico".

O argumento de Beirão é oposto a um dos "comentaristas-sociólogos" supramencionados: ele alega que um país como a Austrália, formado por aborígenes e com histórico de exclusão, não poderia ver seus filhos agindo com racismo.

   para ele, australianos, peruanos e brasileiros
"não tinham o direito" de serem racistas.
"A Austrália foi povoada por degredados ingleses, irlandeses mortos de fome, europeus do Leste fugitivos da guerra e asiáticos pobretões", escreveu Beirão. Mais adiante, ele afirma: "Uma australiana branquela julgando as pessoas pela cor da pele – logo ela, certamente herdeira por DNA do rebutalho do Império britânico.". Ao criticar a torcida peruana, que imitou macacos quando Tinga tocava a bola, seguiu a mesma linha: "Imaginem só: o Peru. Inca, espanhol, negro, japonês."

Sem delongas, citamos o artigo de outro bom jornalista, Márvio dos Anjos, para contrapor o argumento suicida utilizado por Beirão. Logo após o triste episódio com Tinga, dos Anjos escreveu: "Ter vindo de uma torcida peruana não torna o racismo “mais estúpido”, como se peruanos, por terem negros e índios em sua civilização, não tivessem “o direito” de serem racistas. Ninguém tem esse direito. O racismo não tem gradações: quem diz que um peruano é mais estúpido ao reproduzir o racismo que espera de um europeu está dizendo TAMBÉM que o europeu é menos estúpido quando é racista. Talvez inconscientemente esteja exprimindo que o europeu tem mais razões para ser racista."

Por fim, uma notícia decorrente do ataque de Gaunth vai jogar outra luz sobre as incoerências e contradições daqueles que atacam uma pessoa racista - como é o caso da "australiana" em questão - lembrando de sua origem, sexualidade ou o que seja: uma média de 11 casos de racismo são DENUNCIADOS POR MÊS em Brasília. O jornal Correio Braziliense aponta um aumento de 330% nas ocorrências desde que foi instaurado o Disque racismo, em 2012.

Será que os brasilienses (cidade nascida em meio a um deserto há pouco mais de 50 anos, com um povo formado por gente oriunda do país inteiro, chamados de candangos, mal vistos no país inteiro por conta de sua classe política) têm o "direito" de serem racistas?...

Como disse Beirão, seria ridículo se não fosse trágico.

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