segunda-feira, 22 de julho de 2024

Raça X Nacionalidade (102)

 Seis anos depois...


A última semana foi um prato cheio para quem gosta de rótulos e "definições definidoras definitivas", conforme o lado da moeda em que esteja - ou prefira.

Nos EUA, o candidato a presidente que é tachado de "inimigo da democracia" sofre uma tentativa de assassinato clamorosa.

Ainda nos EUA, mas por mero acidente geográfico-logístico neste caso, vimos imagens dos jogadores da seleção argentina entoando um cântico que ataca a "legitimidade" dos jogadores da seleção francesa e usa de tom pejorativo para se referir a transexuais.

No Brasil, o presidente que é defendido como um baluarte da democracia, da igualdade e do respeito entre gêneros, classes e origens afirma, em reunião ministerial, que "se for corinthiano, tudo bem [bater na mulher]".

Ainda em terras brasileiras, além da fala de Lula, movimentaram as redes as notícias sobre duas situações: os bonecos dependurados (simulando enforcamento) no Engenhão e a onda de memes sobre o Ministro da Fazenda.

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Os 5 fatos mencionados acima têm personas públicas envolvidas, com maior ou menor grau de intensidade. E, apesar de aparentemente desconexos, fazem parte de uma grande teia.

Senão, vejamos.


NO ALVO

Na América, até que não restasse mais nenhuma dúvida dada a seriedade do caso, espalhou-se um questionamento sobre a veracidade do atentado a Donald Trump.

No Brasil, uma situação constrangedora aconteceu durante Jornal da Globo News, quando um especialista disse que ainda não era possível afirmar que houve mesmo um atentado - talvez porque, como afirmou o deputado André Janones, era tudo um grande esquema mundial da "extrema-direita".

A tentativa de homicídio qualificado para com o candidato "da extrema-direita" levou o atual presidente a desistir de oficializar sua candidatura, mesmo após ter enfrentado imensas críticas e até mesmo uma suspensão no financiamento de sua campanha - antes do atentado, inclusive.

Criou-se, à época, uma narrativa de que o que estaria por trás dos pedidos - até mesmo editoriais de grandes jornais - de desistência da candidatura era nada menos do que puro etarismo, isto é, o preconceito e a discriminação por conta da idade de alguém (ironia das ironias, o adversário é apenas 3 anos e meio mais jovem).

Com a desistência oficial, motivada pura e simplesmente pelo medo da ascensão de intenções de voto no adversário, a probabilidade é que Biden seja substituído justamente por sua vice: mulher, negra e filha de imigrantes. Representante, portanto, de tudo que o adversário não gosta e dissemina preconceito.

ATAQUE ORQUESTRADO

Os memes com relação ao ministro da fazenda brasileiro agora têm um novo adversário: a narrativa de que se trata de pura desinformação criada e fomentada pela "extrema-direita", para desviar atenção do publico e criar rejeição para com o governo.

A Folha de S. Paulo se ocupou de chamar uma empresa especializada para efetivar análise do fluxo dos memes, procurando confirmar se era possível provar a origem "de extrema-direita", mas a conclusão foi de que foram mesmo espontâneos.

Ora, se o Brasil é chamado até mesmo pela propaganda estatal de país com multiculturalidade e, portanto, com preconceitos apenas relativos e nunca diretos - e, consequentemente, característica máxima do brasileiro é a "autopiada" e a "capacidade de rir das tragédias e encontrar caminhos para seguir" -, a produção dos memes e piadas não seriam apenas um reflexo natural?

DOIS PESOS, DUAS MEDIDAS

Membros da torcida botafoguense penduraram dois bonecos estampando as fotos de duas personalidades importantes do futebol brasileiro: Ednaldo Rodrigues, presidente da CBF, e Leila Pereira, presidente da S.E. Palmeiras. Ambos os bonecos simulavam um enforcamento, e estavam dispostos no estádio Nilton Santos, o Engenhão.

Ainda que houve repercussão na imprensa - e o tom foi, sim, de reprovação ao ato -, pouco ou nada se teve da associação mais intrínseca da representatividade dos personagens: Rodrigues, baiano/negro; Pereira, mulher. Em outras palavras, mesmo no tom crítico nãos e viu misoginia/xenofobia/racismo no ato promovido pelos botafoguenses, e nem mesmo a histórica disputa político-econômica entre RJ e SP foi entendida como pano de fundo.

Ano passado, a torcida do Atlético de Madrid realizou ato muito semelhante, colocando um boneco representando Vinícius Junior dependurado debaixo de uma faixa, que dizia: "Madrid odeia o Real". Não houve, lá, quando da repercussão do ato no Brasil, nenhum entendimento de que se tratava de rivalidade esportiva, econômica ou política (o próprio uso do termo Madri  por parte dos torcedores do Atleti em contraposição ao 'Real' já demonstra esse cunho) como pano de fundo, mesmo que o racismo tenha sido inegável.


ERA SÓ UMA PIADA

A fala de Lula, é bom salientarmos, encontrou reprovação quase unânime na mídia. Justiça seja feita, a Globo adotou tom bastante crítico à "piada" realizada, e enxergou nela um caminho torto para a "legitimização da violência doméstica", uma vez que o presidente tentou 'amenizar' para os corinthianos como ele.

É óbvio que o entorno do presidente, formado tanto por seus ministérios quanto por seus militantes (em alguns casos, se confundem, mas aqui estamos falando do discurso adotado na defesa de sua fala), não hesitou em usar o famoso "ruim, mas não tanto": para Anne Moura, Secretária de Mulheres do governo, Lula "foi infeliz" ao usar '"tom jocoso", mas nunca, jamais, em tempo algum e de forma alguma incentivou a violência contra as mulheres.

Foi a mesma defensiva (e não defesa) utilizada por Gleisi Hoffman quando, nas eleições de 2022, Lula disse, no palanque, "Quer bater em mulher? vá bater noutro lugar, mas não em casa nem no Brasil". Hoffman afirmou que foi "uma frase mal colocada". Lá, a imprensa adotou o termo "gafe" ou "escorregada" para descrever a fala do então candidato.

O histórico de falas do tipo por parte de Lula vem de longe e não se restringe ao momento político, e talvez o grampo telefônico de 2016 seja o melhor exemplo: entre expressões como "grelo duro" e risadas sobre os xingamentos (pê-uh-tê-ah) proferidos a Marta Suplicy, Lula disse que Clara Ant - presidente do Instituto Lula à época e amiga do presidente desde os anos 70 - achou que era "um presente de Deus" quando cinco homens adentraram sua casa, antes de saber que eram agentes da Polícia Federal.


AOS AMIGOS, A LEI; AOS INIMIGOS, O RIGOR DA LEI.

Por fim, chegamos ao cântico dos jogadores argentinos - reprodução de torcedores na época da Copa do Mundo do Qatar, e que ainda repercute em estádios do país. A tal canção foi feita para atacar os atletas franceses, afirmando que eles não são franceses e sugerindo que, por serem africanos, são inferiores - ecoando o que (lá, sim) é uma pauta "da extrema-direita" (e não apenas na própria França, como em toda a Europa Ocidental, irrompendo as barreiras da política).

Indefensável, de fato, e também um reflexo da impunidade e relativismo que imperam no país vizinho com relação a falas e termos discriminatórios e pejorativos, com todas as concessões que se faça a um povo que, a exemplo do brasileiro, também é expert em falar mal de si mesmo.

Chama a atenção, porém, a indignação seletiva, e o uso de tratamento diferenciado quando se trata dos "rivais": ora, as vozes brazucas que desdenham de um tiro e promovem fake news em TV aberta são as mesmas que se dizem chateadas com a profusão dos memes; as vozes que se indignam ao ver os brasileiros perseguidos na Espanha ou em Portugal não se indignam com os brasileiros perseguidos na rua ao lado.

afirmação de Lula em 2003.

Por fim, as vozes que encontram nos regionalismos e na sua ausência de instrução formal as justificativas para as falas homofóbicas, xenofóbicas, machistas e racistas do político preferido são as mesmas que se dizem indignar com ofensas de jogadores de futebol, geralmente com as mesmas origens e (falta de) oportunidade) do presidente - e não devem ser isentados por isso, pois, além de estarmos numa época em que tudo é visto por bilhões ao mesmo tempo, a grana conquistada por eles é o suficiente para buscarem instrução e reavaliação de (maus) costumes. 

***

Por que é que você vê o cisco que está no olho do seu irmão e não repara na trave de madeira que está no seu próprio olho? Como é que você pode dizer ao seu irmão: “Me deixe tirar esse cisco do seu olho”, quando você está com uma trave no seu próprio olho? Hipócrita! Tire primeiro a trave que está no seu olho e então poderá ver bem para tirar o cisco que está no olho do seu irmão.
(Evangelho de São Mateus, cap. 7, vers. 3 a 5)


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