sábado, 27 de novembro de 2010

Muito Além do Futebol... (40)

O texto a seguir foi escrito pelo brilhante escritor brasileiro Moacyr Scliar, e publicado no jornal "Zero Hora", do Rio Grande do Sul. Dando mostras de que o assunto é no mínimo relevante, além dos veículos 'profissionais' onde o texto propagou-se, ele foi parte de uma das questões da prova de Língua Portuguesa do Colégio Militar de Porto Alegre.

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O Discutível Humor Étnico

O Ministério Público Federal de Minas Gerais recomendou que a Ambev retirasse do ar o comercial que faz piada, aliás sem muita graça, a respeito da rivalidade entre brasileiros e argentinos. A propaganda da cerveja Skol mostra torcedores com a camisa da seleção argentina que, depois de abrirem uma lata de cerveja, são chamados de “maricón”.

Piadas sobre argentinos são frequentes em nosso país; no Google existem nada menos que 428 mil referências a respeito, superando em número as piadas de português (417 mil). “Curte sacanear os argentinos?”, pergunta um dos sites, para acrescentar, cúmplice: “Nós também.”

Essas piadas se enquadram no chamado humor étnico, extremamente difundido em nosso mundo. Nos Estados Unidos são alvos preferenciais os poloneses, considerados pouco inteligentes, os chineses (comem cachorro), os mexicanos, que usam carros caindo aos pedaços. Em muitos outros países, existem ditos e anedotas similares. O humor étnico corresponde a um estereótipo, em geral agressivo. O sociólogo americano Gordon Allport criou uma escala sobre a agressividade intergrupal, com cinco graus.

Assim, um grupo pode ser ignorado ou evitado, pode ser francamente discriminado (“Negros não entram”), pode ser fisicamente atacado ou pode ser exterminado: o Holocausto, negado pelo presidente do Irã. Mas tudo, diz Allport, começa com palavras: frases insultuosas, anedotas, que constituem o primeiro grau da agressão.

Pergunta: tem o humor étnico alguma base na realidade? Pode ter. Os chineses comiam cachorro por falta de outras fontes de proteína. Os mexicanos compravam carros velhos porque eram pobres. Os judeus, na Idade Média, tornaram-se usurários porque outros ramos da atividade econômica lhes foram proibidos.

Tomem, no Brasil, o caso dos portugueses. Os primeiros que aqui chegaram, os donatários por exemplo, não eram objeto de gozação. No século 19, vieram portugueses pobres, incultos, que sobreviviam graças ao trabalho físico; daí as anedotas. Mas depois Portugal entrou no Mercado Comum Europeu, prosperou – e as piadas se foram, substituídas pelas de baiano (também sumiram, felizmente).

O fato de alguns argentinos classificarem os brasileiros como “macaquitos” alude, de maneira grosseira e ofensiva, à presença dos negros em nossa população. A crua observação pode gerar perigoso preconceito – quando as pessoas começam a acreditar que o característico “está no sangue”, que é inevitável, e que, no caso extremo chega ao extermínio.

Humor é para ser engraçado, para provocar riso, mas pode ser uma coisa problemática. O limite é tênue. O humor judaico baseia-se em piadas sobre judeus; mas só é humor se estas são contadas pelos próprios judeus; contadas por outros, e dependendo do tom e das circunstâncias, pode ser antissemitismo.

Conclusão: na dúvida, é melhor evitar esse tipo de anedotas ou de ditos, e neste sentido fez muito bem o MPF de Minas. Propaganda de cerveja já é coisa muito duvidosa; associada a uma piada ofensiva fica ainda pior. Piadas sobre argentinos podem ser engraçadas. Desde que contadas, ou endossadas, pelos próprios argentinos.

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