terça-feira, 4 de junho de 2013

Raça X Nacionalidade (64)

Trazemos hoje mais um assunto importante no que tange a raça, preconceito e legislação. Pretendemos que se faça uma séria reflexão a respeito da Lei 12.288/10 – conhecida como Estatuto da Igualdade Racial.

De autoria do Senador Paulo Paim (PT-RS), com grande contribuição de grupos do movimento afro-descendente brasileiro (e através de audiências públicas por todo o país), o projeto tramitou quase uma década no Congresso para, com 65 artigos, entrar em vigor em outubro de 2010, sancionado pelo Presidente Luis Inácio (Lula) da Silva, objetivando, basicamente, defender e resguardar os brasileiros que sofrem preconceito ou discriminação em função de sua etnia, raça ou cor (especificamente, como demonstraremos a seguir), propondo normas e políticas públicas incidentes a tudo que trata a questão.

Senadores aplaudindo a aprovação do Estatuto

A seguir, citaremos apenas os Artigos 1º e 3º - presentes nas disposições preliminares - da referida lei; não por desconsiderarmos o restante do conteúdo do diploma legal, mas por entendermos que em ambos artigos, a proposta dos direitos que são tutelados se mostra de forma sintática:


Art. 1o  Esta Lei institui o Estatuto da Igualdade Racial, destinado a garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica.



Parágrafo único.  Para efeito deste Estatuto, considera-se:



I - discriminação racial ou étnico-racial: toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objeto anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em igualdade de condições, de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida pública ou privada;

II - desigualdade racial: toda situação injustificada de diferenciação de acesso e fruição de bens, serviços e oportunidades, nas esferas pública e privada, em virtude de raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica;

III - desigualdade de gênero e raça: assimetria existente no âmbito da sociedade que acentua a distância social entre mulheres negras e os demais segmentos sociais;

IV - população negra: o conjunto de pessoas que se autodeclaram pretas e pardas, conforme o quesito cor ou raça usado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ou que adotam autodefinição análoga;

V - políticas públicas: as ações, iniciativas e programas adotados pelo Estado no cumprimento de suas atribuições institucionais;

VI - ações afirmativas: os programas e medidas especiais adotados pelo Estado e pela iniciativa privada para a correção das desigualdades raciais e para a promoção da igualdade de oportunidades.

Art. 3o  Além das normas constitucionais relativas aos princípios fundamentais, aos direitos e garantias fundamentais e aos direitos sociais, econômicos e culturais, o Estatuto da Igualdade Racial adota como diretriz político-jurídica a inclusão das vítimas de desigualdade étnico-racial, a valorização da igualdade étnica e o fortalecimento da identidade nacional brasileira.


De forma pertinente, antes de mergulharmos na discussão - para reforçar o conhecimento -, vale ressaltar alguns dados estatísticos: pelos números do Censo Demográfico realizado pelo IBGE, no ano de 2010, o Brasil contava com uma população de quase 191 milhões de habitantes, dos quais cerca de 15 milhões se declararam como pretos (7,6% do total) e 82 milhões como pardos (43,1% do total).



Na justificativa do Projeto de Lei, em 2006, o Senador Paim argumentou e propôs [sic]: “A fim de eliminarmos (grifo nosso) o racismo, o preconceito e as discriminações, muito tem sido feito, mas ainda há muito a se fazer (...) para dar fim (grifo nosso) aos pensamentos discriminatórios; (...) o Estatuto é um conjunto de ações afirmativas, reparatórias e compensatórias. Sabemos que esses tipos de ações devem emergir de todos e de cada um. Devem partir do Governo, do Legislativo, da sociedade como um todo e do ser humano que habita em cada um de nós”.

Fazendo um exercício de memória: se por um lado, e de fato, o Estatuto atualmente não é “unânime”, tampouco “conhecido” por grande parte da população, de outro, na época em que o projeto estava em discussão e votação, as mais diversas classes debateram com veemência a questão, restringindo o mérito a dois posicionamentos: por uma vertente, cobrava-se a famigerada “dívida histórica” do Brasil para com os negros (devendo-se muito aos fatos do sequestro de africanos, da escravidão e da abolição “incompleta”, por uma Lei Áurea ineficaz, a priori); argumentava-se que a desigualdade é produto da ação e da omissão do Estado, recaindo sobre a ele a responsabilidade de correção.

As pessoas que se mostraram contrárias a questão, protestaram afirmando que no Brasil praticamente inexiste meio de definir separação de raça/cor – negro, branco, etc. -, uma vez que é um país majoritariamente mestiço; as Leis Jim Crow, nos Estados Unidos, o Apartheid na África do Sul e as Leis de Nuremberg na Alemanha nazista foram exemplos recorrentes nessas argumentações; não foi deixado de lado o fato de que aproximadamente 19 milhões de brancos também se encontravam abaixo da chamada “linha de pobreza”, como também gerou diversos protestos, a polêmica Lei 12.711/12 – chamada Lei de Cotas. Arnaldo Jabor, inclusive, bradou na situação:




No Brasil, reconhecidamente, são questionadas diversas leis, como por exemplo: o Estatuto do Idoso (Lei 10471/03) e o Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90).

Talvez o caso mais emblemático da discussão eficácia/aplicação/(re)conhecimento esteja no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90). Em sua clássica obra “O Cidadão de Papel” (1994) – que, dentre tantas pertinentes considerações, discute a desigualdade social, questiona as razões de crianças/adolescentes tornarem-se menores infratores, e, evidentemente, o exercício prático das normas constitucionais -, Gilberto Dimenstein, na apresentação, define magistralmente: “a verdadeira democracia, aquela que implica o total respeito aos Direitos Humanos, está ainda bastante longe no Brasil. Ela existe apenas no papel. O cidadão brasileiro na realidade usufrui de uma cidadania aparente, uma cidadania de papel. Existem em nosso país milhões de cidadãos de papel. Desvendar as engrenagens que produzem este tipo de cidadania, eis o objetivo deste livro. Essas engrenagens estão diante dos nossos olhos. Convivem com nosso dia-a-dia. Nós fazemos parte delas. Nós as produzimos”.

O conceito de Dimenstein se amolda perfeitamente a nossa Constituição Federal de 1988, como exemplificação, nos Títulos I, II e VIII, que tratam respectivamente dos princípios fundamentais, dos direitos e garantias fundamentais e da ordem social.



Opostamente, o conceituado jurista, Dr. Calil Simão, na primeira e significativa obra referente ao tema, denominada “Estatuto da Igualdade Racial”, em 2011 (págs. 11 e 14), comentou a respeito: "com base no Estatuto da Igualdade Racial é possível exigir do Estado medidas concretas para atender um interesse individual ou coletivo, bem como pode um ente político exigir do outro a sua contribuição nos projetos e ações destinadas a combater a “discriminação racial” e as “desigualdades raciais” que atingem os afro-brasileiros.

Desse modo, o argumento de alguns de que o Estatuto da Igualdade Racial é um texto de compromisso ou simplesmente sugestivo sem qualquer característica de coercitividade não procede, já que ele trata do dever do Estado, regulamentando a Constituição Federal e definindo qual a postura do Estado com relação à proteção e promoção dos interesses dos afro-brasileiros. Se a proteção dos direitos fundamentais, a teor do § 2º do artigo 5º da Constituição Federal, tem aplicação imediata, podendo-se exigir do Estado, por meio do Poder Judiciário, o exercício de qualquer direito fundamental, independentemente de lei ou ato normativo infraconstitucional, o Estatuto da Igualdade Racial serve para delimitar e direcionar esse dever fazendo surgir ao Estado um dever comissivo específico, conseqüentemente, inaugurando sua responsabilidade em razão de uma omissão, bem como norteando a atuação do Poder Judiciário e dos titulares da proteção dos direitos difusos e coletivos”.

Censo 2010

Após um ano da sanção da supracitada lei, Eloi Ferreira de Araujo, Ministro da Secretaria de Políticas para Promoção da Igualdade Racial à época, declarou: “é a forma mais democrática e legal para que sejam asseguradas as possibilidades de acesso aos bens econômicos e culturais a toda a nação de maneira igualitária. O primeiro diploma legal (grifo nosso) incluído no arcabouço jurídico brasileiro, desde 1888, tendo em vista a construção de ambiente de igualdade de oportunidade entre negros e não-negros (...) É um ano de conhecimento. O Brasil inicia um processo de apropriação desta legislação”. Disse ainda: “devem ser estabelecidas imposições para que o Estatuto tenha a eficácia plena como deve ser. Um processo de estudo e empenho da sociedade civil, além de uma aceleração por parte dos órgãos do governo que têm responsabilidade na sua regulamentação para que seja promovido o acesso direto ao que estabelece a lei”.

Jean Baptiste Debret
Segue a mesma linha de pensamento a secretária de Políticas das Comunidades Tradicionais da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), Silvany Euclenio, considerando que o período de vigência do Estatuto é curto para mensurar o impacto gerado por ele.

Intrigante e ao mesmo tempo contraditório, é Silvany afirmar que “as ações afirmativas são medidas ‘discriminatórias positivas’; ‘discriminam para integrar’”. Levando-se em consideração que ao citarmos a justificativa do Projeto de Lei do Estatuto da Igualdade Racial, destacamos que o Senador Paulo Paim almejava “eliminar o racismo e dar fim aos pensamentos discriminatórios”...

Por isso, é fundamental que tenhamos noção da eficácia da propositura; como está sendo feita a aplicação do dispositivo, passado algum tempo?



O conselheiro estratégico do Centro de Articulação de Populações Marginalizadas, Ivanir dos Santos, concorda que o Estatuto seja um importante marco legal, entretanto, lamenta a lentidão com que os efeitos são percebidos; Santos enfatiza que o maior avanço registrado durante o período de vigência do texto foi justamente um ponto retirado do documento durante a tramitação no Congresso: a Lei de Cotas, regulamentada pelo Decreto 7.824/12, publicado em 11 de outubro no Diário Oficial da União.

Domingos Dutra, Deputado Federal (PT-MA), afirma que “a lei é muito boa, mas precisa se debatida com urgência; o Estatuto ainda precisa ser implementado, de fato; precisamos de ações concretas que possam implementar a execução das políticas públicas e afirmativas. Do contrário, (a lei) ficará na burocracia, se tornando letra morta”.

O Senador Cristovam Buarque (PDT-DF), frisou que agora, o fundamental é lutar pela melhoria da educação, e fez outras importantes ressalvas:



Para alguns cidadãos, isso não foi esclarecido...

Diante do exposto (e com base nessa sucinta interpretação analítica), deixamos o questionamento: seria mesmo necessário criar uma lei específica para tratar de assunto(s) presente(s) (e assegurados, literalmente) na Carta Magna, onde “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza” (Art. 5º, caput)? Estará o Estatuto da Igualdade Racial cumprindo seu papel, ou se apresenta da mesma forma que os Códigos outrora citados, na prática? De fato, contribui para o “pagamento” da dívida histórica? Ou fica aquela sensação de “filme repetido”?

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