O preconceito do bem
Certa vez, numa aula de Literatura,
o Professor afirmou: “também existe o preconceito
do bem, sabiam?”. A turma fez aquela tradicional cara de paisagem,
então o Mestre continuou: “Sim:
preconceito não é apenas ter imagem ruim de grupos, pessoas: também pode haver
imagens boas que são preconceituosas”. O silêncio continuava, e ele
prosseguiu: “É, isso mesmo! Vou chocar
vocês agora: sabiam que tem japonês vagabundo, safado, criminoso? Pois é! Nem
todo japonês é honesto e educado, tem muito fdp por lá também”.
Verdade: há milhões de japoneses
prestativos, humildes, amigáveis e solidários. Mas há, também, muitos facínoras,
desumanos,
lunáticos,
pervertidos,
fraudadores
e mentirosos
(todas as notícias linkadas são recentes). Em resumo, um japonês não é “uma
pessoa melhor” por ter os olhos puxados ou porque nasceu naquela ilha de 378
mil km²: o que acontece é que, lá, contravenções e crimes menores são punidos
mais rigorosamente, e há maior e melhor acesso à educação.
Porém, nem isso impede que o mau-caráter muitas vezes vença e vigore.
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Conca: jogador que mais atua no Campeonato Brasileiro |
Falando sobre Argentina e Brasil,
temos pelo menos dois “preconceitos do bem” bastante difundidos.
Quatro anos atrás, Muricy Ramalho
teceu elogios ao jogador Darío Conca, falando sobre sua dedicação e doação à
equipe do Fluminense: “não perde nenhum
jogo, é o que mais treina, não fica questionando”. O treinador viu nessas qualidades
individuais do meio-campista uma característica inata dos argentinos: “Isso é do argentino. Os clubes europeus preferem [jogadores argentinos] porque eles não reclamam de saudade, não sofrem com o frio, não ligam
pra comida, se o bife está duro” -- distinção semelhante foi feita pelo técnico uruguaio Gerardo Pelusso.
Conca não é propriamente uma
exceção – vários argentinos, no futebol brasileiro ou europeu, e em diversas
outras profissões, demonstram essa “capacidade de adaptação”, maturidade e
devoção aos compromissos –, porém, existem muitos argentinos preguiçosos,
mimados e inconvenientes.
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Brasileiros: um povo feliz e acolhedor |
Quanto aos brasileiros, o preconceito do bem mais comum certamente é aquele do “povo alegre e amistoso”, que em último grau vai se confundir com a “receptividade” a diferentes culturas, etnias, religiões, etc. Seguramente muitos estrangeiros e minorias se sentiram acolhidos no Brasil, mas tratar isso como um fato não
passa de propaganda e pode ser
bastante perigoso, não à toa existem estudos
e análises sobre esse mito.
Conforme dissemos no texto sobre o Mundial, a Copa do Mundo realizada no Brasil fomentou e reforçou muitos estereótipos.
Dentre essas muitas imagens, uma, positiva, foi a mais propagada: a dos “alemães bonzinhos”.
Os elogios começaram muito antes,
falando da simpatia de Schweinsteigger, Klose e companheiros. Lukas Podolski,
por exemplo, assumiu a alcunha
de “meio brasileiro”, postando mensagens em português e fotos interagindo
com a cultura local (da novela à feijoada) em seu Instagram. No entanto, surgiu
na internet uma epidemia de pequenos textos falando da hombridade e "caráter superior" dos alemães.
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Lukas Podolski, "o mais brasileiro dos alemães" |
Já antes da humilhante vitória
por 7 a 1, “bombou” o seguinte post:
"Vou torcer para a Alemanha. Por
que?
Há 6 meses, os alemães chegaram
e…
- Compraram um terreno,
- Construíram um hotel,
- Construíram um centro de saúde,
- Construíram um campo de
futebol,
- Doaram uma ambulância,
- Criaram um programa de escola
em tempo integral em Cabralia,
- Fizeram uma estrada para
interligar o centro de treinamento,
- Não trouxeram funcionários
alemães, contrataram as pessoas da cidade,
- Gerando 250 empregos diretos no
local de treinamento,
Depois a seleção alemã chegou e…
- Quando não estavam treinando,
estavam socializando com as pessoas na cidade e na praia,
- Participaram de festas com a
população,
- Interagiram com os índios e
atenderam suas demandas,
- Vestiram a camisa do time local
(o Bahia),
Dá pra não torcer pra esses
caras?"
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bandeira da "Brasilemanha", no Rio de Janeiro |
Com a
eliminação brasileira e, um dia depois, a classificação argentina à Final, o
texto ficou ainda mais popular e passou a ter o título “Por que torcer pela Alemanha na final”,
acrescentando informações sobre a vitória diante do Brasil:
- Nunca desrespeitaram os
brasileiros,
- Combinaram no intervalo do jogo
em diminuir o ritmo para não desrespeitar a seleção anfitriã,
- Mostraram que seus ídolos são
os nossos jogadores do passado,
- Pediram desculpas após a
goleada, e tiveram classe para ganhar
Nada muito diferente do que vimos três anos atrás, quando o Barcelona goleou o Santos na final do Mundial de Clubes, certo? Porém, os maiores elogios aos
alemães se deram quanto aos gastos do “próprio bolso” em prol da “comunidade local”
e “deixados como herança”:
- Vão deixar tudo que construíram
para a população da cidade.
Uma série de mentiras misturadas
com falta de apuração dos fatos gera o que chamamos desinformação.
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Governador da Bahia e o chefe da delegação alemã |
Primeiro ponto: em dezembro do
ano passado foi noticiado que o Governo Estadual da Bahia iria pagar
parte das despesas da seleção alemã durante sua hospedagem. Os gastos dos
cofres públicos foram calculados em torno de R$ 1 mi, e incluíram a
construção de todo o centro de mídia utilizado pela federação.
Outra apuração jornalística,
depois que os boatos do “hotel construído e doado” ganharam mais
força, revelou que o Centro de Treinamento já
existia havia cinco anos (!) e era, na verdade, um projeto imobiliário.
Reportagem da Folha de S. Paulo, no começo do ano, falava de “receio
e esperança” dos moradores locais com o empreendimento.
Entretanto, a grande revelação
aconteceu semana passada, já um mês depois do fim da Copa do Mundo: a empresa (alemã) contratada pela delegação alemã é acusada de calotes
em vários prestadores de serviço (brasileiros), chegando à casa de 1 milhão
de reais, incluindo 6.3 mil em contas de luz. Depois da repercussão e reconhecimento da dívida, o grupo contratado ainda acusou o Banco Central pelos problemas de pagamento!
E agora, por onde anda o famigerado "Autor Desconhecido" do viral “Por que torcer pela Alemanha”?...
E agora, por onde anda o famigerado "Autor Desconhecido" do viral “Por que torcer pela Alemanha”?...
Alemães não são “bonzinhos”, como
quiseram pintar, e também não são “nazistas”, como já foram pintados. Alemães
são pessoas: nem melhores nem piores que argentinos ou brasileiros.
Simplesmente vivem num país melhor organizado e mais rígido em suas leis.
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Brasileiros e Alemães: "Temos que torcer pra eles" |
Queriam torcer pela seleção alemã
contra a argentina? Perfeito, sem problemas! O time alemão é gigante
historicamente e, nos últimos anos, é o que apresenta o melhor futebol
coletivo. Assim, torcer pela beleza do jogo deles era a única justificativa aceitável.
Excelente texto. E muito bem observado: não darão o mesmo destaque ao calote. Aliás´, é típico do Brasil exaltar "malandragem" e radicalizar com honestidade.
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